sexta-feira, 24 de abril de 2015

ONDE?



Tardo é o tempo dos ternos amores,
das paixões escorridas em favos de mel,
de luar enlevando as juras perdidas
e de lua espiando do alto do céu.
Restam suspiros em quintais de saudades,
pulsares descompassados em bailados de amor,
aquarelas de augúrios cintilando vontades
pinceladas em sonhos e ultimadas sem cor.
Onde se foi esconder a noite encantada,
em seu manto de estrelas?
Onde, a indefinível paixão, a entrega, a ilusão,
que não se consegue mais vê-las?
Retretas de pirilampos ecoam solfejos de anjos,
ciciando esperas ao comando da lua.
Borboletas coreografam lembranças desordenadas,
grafitando quimeras rabiscadas na funda escuridão.
Há sinais de final de jornada,
intuindo a sábia lição da vida que segue,
levitando ao encalço do sonho,
que nunca haverá de findar.
Ariovaldo Cavarzan


Avô, porque é que és tão velhinho?


Avô, porque é que és tão velhinho?
Assim mesmo, sem roupagem, sem artifícios, sem ironia ou maldade, apenas a pergunta, a curiosidade.
A interrogação, pelo inesperado e brusco que continha, subsistia no ar que envolvia os dois antípodas do tempo e no ar curioso que vestia o rosto infantil do fedelho.
– Porque é que sou tão velho?... bem… – depois daquele início inesperado de “conversa”, o avô recuperava a pose de adulto que tudo sabe e, acima de tudo, ganhava algum tempo, o tempo suficiente, esperava ele, para responder alguma coisa de jeito.
– Sou velho porque já vivi muitos dias, muitos meses, muitos anos. – a sua resposta tentava adequar-se ao nível simples da linguagem informal e pouco profunda do neto, enquanto olhava “raposamente”, de soslaio, por entre pestanas semicerradas, através das muitas dioptrias das lentes de uns óculos que aparentavam ter quase tantos anos como ele próprio.
– Então, e o que é que acontece aos velhinhos como tu? – aqui, o avô não deixou de notar na reiterada meiguice do “inho” já utilizado em ambas as perguntas e achou que devia explicar algo melhor a sua ideia. Afinal de contas, já havia muito tempo que não falava com alguém que se mostrasse minimamente interessado naquilo que ele pensava, fosse de si mesmo ou de outra coisa qualquer.
– Sabes, as pessoas como eu, aquelas que já vivem há imenso tempo, são como as folhas das árvores. Primeiro, são fortes, frescas e vistosas; mais tarde, começam a faltar-lhes a memória e a força e amarelecem, por dentro e por fora; por fim, caem das árvores, que as seguravam e onde tinham nascido e vivido, para o chão. Umas vezes, são as forças da natureza que as empurram mas, outras vezes, até parece que são elas próprias que se deixam cair, suavemente embaladas como um berço de bebé.
– Mas, no chão, elas ainda são folhas, não é!? – desta vez, o avô não conseguiu perceber se o neto estava afirmando, se pretendia fazer outra pergunta ou se estava apenas a concluir e fez-se silêncio.
Como sentisse que estava a ser observado, como um mamute pré-histórico é observado por um geólogo, o idoso e paciente homem decidiu entender as últimas palavras do neto como mais uma questão a desenvolver e continuou.
– Uma vez no chão, as folhas são levadas pelo vento, para longe da árvore onde sempre estivera, para um canto qualquer onde já outras folhas bafientas, sem préstimo algum, se encontram e outras continuam a chegar, num ritmo triste e desesperançado, esquecidas pelos outros e mesmo delas próprias… – o avô agora divagava, ao sabor da imagem amarga que acabara de criar e assim continuou. – Depois de juntas as folhas, pelo vento ou pela vassoura de alguém, secam, definham e quebram-se em pedacinhos, queimam-se ou são, de novo, pisadas pelas pessoas que, distraídas, nem se apercebem da sua existência…
Dito isto, o velhote acordou da sua história e apercebeu-se da existência do ar atipicamente austero e compenetrado na face do neto que, de imediato, ali lhe prometeu veementemente:
– Nunca mais vou pisar as folhas das árvores! – parecia que o rapaz se tinha comprometido para a vida, cedo demais, para uma viagem que achava que tinha compreendido. Não é isto mesmo que se espera de uma criança?...
Assim, ao ver o aspecto demasiado sério que a conversa tomara, o avô tomou a mão do circunspecto neto, como se cumprimentasse honradamente a mão de outro homem, e disse-lhe:
– Não é necessário não pisares as folhas, basta que nunca pises as pessoas!
Apertando a mão do avô, com a honradez própria de um homem sério e digno, sentiu-se algo confuso mas recompôs-se, limpando o sobrolho ligeiramente vincado pelo turbilhão de coisas que não sabia se entendia ou não, o neto rematou a conversa:
– Vou jogar à bola, queres vir? – e correu para o pequeno jardim da casa, pontapeando uma bola contra o muro e gritando entusiasmado com amigos e público imaginários, pisando a relva e as folhas amarelecidas pelo Outono prematuro, que tinham já tombado das árvores que antes as seguravam.
– Já vou, já vou… – murmurou o avô, falando mais com um amigo imaginário, que já o acompanhava há muito, do que com o neto, que já nem o ouvia – devagarinho mas ainda vou. Este jardim precisa ser limpo. As árvores, este ano, perderam mais folhas e, ainda, mais cedo do que habitualmente…

Vitor. C